Entre o final do século XIX e primeira metade do século XX, a cidade de São Paulo, entre outras, como a do Rio de Janeiro, capital da República, foram modelos expressivos da Belle Époque no Brasil. Em fevereiro de 1922, na cidade de São Paulo, ocorreu no Theatro Municipal, a Semana de Arte Moderna, um evento artístico cultural que reuniu diversas apresentações de dança, música, recital de poesias, exposição de pinturas e esculturas além de palestras e discussões literárias. As obras de arte apresentadas na semana de 22 estavam em contraposição com o padrão das estéticas artísticas tradicionais e causaram impacto e estranhamento no público que frequentava os melhores lugares da cidade, inclusive o referido teatro. Essa repercussão ocorreu porque a mentalidade da maioria da sociedade estava moldada por valores conservadores.
Conhecer os padrões morais vigentes no Brasil, ainda mais na cidade onde a Semana de Arte Moderna ocorreu, é pertinente até mesmo para entender o quanto os artistas da Vanguarda ousaram em suas manifestações artísticas e formas de comportamento.
Beleza e requinte eram sinônimos de saúde e bem-estar para aqueles que podiam desfrutar das benesses da cidade em exposição, onde as pessoas de posses financeiras saíam às ruas de São Paulo elegantemente vestidas para trocar olhares entre si e olhar as vitrines onde ficavam expostas as roupas, os sapatos, os chapéus, as luvas, as joias, os tecidos, os perfumes e os produtos de toalete que eram desejados. Nas vitrines também estavam os doces e os salgados dos cafés e das confeitarias. O café com requinte era apreciado por aqueles que podiam pagar por ele, enquanto o café requentado dos estabelecimentos mais humildes, como o das quitandeiras, foi fiscalizado e, por ordem do serviço de sanitização e higienização, muitos foram fechados a partir do primeiro código sanitário do Estado de São Paulo promulgado no dia 2 de março de 1894.
Inspirados nos desdobramentos do primeiro código sanitário do Estado de São Paulo com o aval dos discursos médicos, as autoridades modificaram a paisagem do espaço urbano que se tornava cada vez mais moderna e civilizada, porém excludente e opressora, uma vez que diante das aparências desveladas houve mazelas não reveladas que merecem tornar-se visíveis através dos estudos citadinos mediante interlocução entre os saberes do conhecimento histórico, arquitetônico e outros.
As cidades belas e higienizadas, como São Paulo no período, foram o cenário para que as elites pudessem viver e exibir-se também como belas e burguesas. A arquitetura, naquele período, recebeu os desdobramentos do estilo expresso no ecletismo arquitetônico como, por exemplo, na beleza da Art Nouveau e, posteriormente, da Art Déco. Para fazer uma cidade bela e saudável, muitas exclusões sociais ocorreram e demarcaram a posição social de diversos grupos na cidade.
A Belle Époque brasileira teve seu início entre o final da década de 70 do século XIX e desenvolveu-se até a década de 20 do século XX. Naquele contexto houve a europeização dos hábitos e costumes na sociedade brasileira. Com isso, a arquitetura e a engenharia dialogaram com o discurso médico, no qual o significado do belo estava vinculado à ideia de saúde e vice-versa. Sendo assim, esses dois conceitos caminhavam juntos no corpo citadino e no corpo humano, sobre os quais homens e mulheres deveriam cumprir os rituais de toalete e aplicar em suas vidas os aconselhamentos da medicina.
Os espaços de moradia como os bairros, os locais de lazer, as confeitarias, os parques, os teatros, entre outros, demarcaram os territórios de requinte, de refinamento, de beleza e salubridade que foram ocupados e frequentados pela elite em oposição àqueles considerados deteriorados, feios e insalubres como as moradias dos bairros operários, os cortiços, os botequins, os portos, entre outros.
As reformas urbanas com bases higienistas e sanitaristas na cidade de São Paulo tiveram início na segunda metade do século XIX, e foi a partir da primeira década do século XX que os médicos eugenistas começaram a dialogar com seus pares das áreas da higiene e do sanitarismo. Com isso, houve especificidades na medicina eugênica que foram divididas entre positivas e negativas. A primeira com caráter preventivo e a segunda de caráter mais invasivo. A eugenia positiva visava a educação e o incentivo da procriação de pessoas consideradas aptas para o melhoramento da raça, já a eugenia negativa propunha evitar a proliferação dos incapazes com projetos de esterilização. Vale
dizer que a eugenia negativa foi utilizada pelos médicos nazistas no período posterior a esse durante o governo totalitário de Adolf Hitler na década de 1940 . Sendo assim, no primeiro momento que corresponde à década de 10 e à década de 20, sanear correspondia ao ato de eugenizar. Apesar das discussões e do movimento eugenista de forma geral ter abordado temas como o casamento, a maternidade, a proteção da infância, os tipos raciais, a proteção nacional, a imigração, as doenças venéreas, as doenças mentais e os arquivos genealógicos, não houve unanimidade do pensamento médico eugenista e, portanto, os discursos foram diversos. Dessa forma, para melhor delimitar a análise do período, o presente texto foca no período em que cuidar da higiene significava cuidar da eugenia.
“A Paulicéia Desvairada”, título da obra de Mário de Andrade (1893 – 1945), expressou o contraste entre a cidade como o lugar de festejos multiculturais e de vanguarda e a cidade como o lugar permeado pela dominação capitalista manifesta através da moral conservadora, racista, elitista e excludente, na qual os ideais de beleza traziam significados sobre a saúde, a higiene, a civilização e o progresso manifestados no corpo citadino e no corpo humano forjados pelos discursos hegemônicos ou seja, de poder apresentados a sociedade do período como a forma correta e única de ser civilizado.
Através de metáforas, a referida obra de Mário de Andrade trouxe para a cena personagens que representam os grupos sociais e, também, os indivíduos que sofreram com a segregação e estiveram envolvidos pela pobreza como é o caso das mulheres, dos afrodescendentes, dos operários, dos imigrantes, entre outros sujeitos. Outros artistas envolvidos com o movimento modernista na época, diante das especificidades e multiplicidades de suas obras que foram além da literatura, também denunciaram e evidenciaram o desvario, ou seja, a incoerência da cidade que se pretendia moderna e civilizada diante de tantos retrocessos e violências.