A construção do reverso da beleza foi feita através de uma trama de pensamentos, teorias e ações hegemônicas, ou seja, de poder que elegeram determinados sujeitos para serem representantes da feiura diante da sociedade no fim do século XIX e início do XX.
Para isso, discursos, ações políticas científicas, filosóficas e sociais, atuaram para fundamentar a estética da feiura. Nas tramas dos discursos e das ações hegemônicas, a estética do reverso da beleza foi constituída. Dessa forma, a feiura esteve em evidência em corpos e rostos estigmatizados como monstruosos, abomináveis, defeituosos, tarados e horríveis, conforme apontaram os discursos e as ações da eugenia, área da medicina que cuidava do aprimoramento das etnias.
As exibições dos corpos classificados como anormais passaram a confirmar a normalidade dos corpos considerados belos, e esses, por sua vez, legitimaram que os corpos que não estivessem dentro das normas fossem alvo de estigmas negativos. Os corpos e rostos disgênicos, ou seja , fora dos padrões, formaram o elenco dos shows de horrores e fez com que cada uma daquelas pessoas tivesse sua vida exposta, e sobre elas houve comentários que traziam deméritos sobre sua identidade, onde sua monstruosidade estava relacionada ao seu corpo ou rosto que possuía algum tipo de alteração física ou mental, ou até mesmo a sua etnia.
As iconografias, ou seja, as imagens do período da Belle Époque, incluindo as propagandas dos produtos de toalete, reproduziram padrões que foram elaborados pela hegemonia e corroboraram modelos que foram legitimados pelas especialidades médicas como a eugenia em interlocução com o higienismo e o sanitarismo. Ao demonstrar modos de vida, as imagens foram muito mais além da ilustração referentes a um entretenimento, cada uma delas ensinaram, de forma eloquente, sobre os cuidados dos corpos que deveriam ter visibilidade em detrimento dos outros corpos que invisibilizados ou ridicularizados revelavam sobre o sofrimento existente por trás de toda a cena do entretenimento.
Isso posto, se faz pertinente trazer à tona os corpos considerados desonrados porque eles também foram colocados em evidência para servirem de modelos da feiura legitimados por discursos e ações que os colocaram em uma posição de inferioridade diante dos corpos que pertenciam a honra, ou seja, todos aqueles portadores da saúde e da beleza.
Uma importante reflexão a ser destacada é que, assim como a doença e a feiura, a beleza e saúde precisam de um corpo para existir. Portanto, todos os corpos inseridos em uma determinada sociedade foram e ainda são alvos de olhares e intervenções moldados por ações da hegemonia diante de cada contexto histórico e dos valores culturais vigentes. No caso da época analisada nesse artigo, a beleza subjugou a feiura e essa, por sua vez, deveria ser evitada, temida, mas também, observada. Portanto, aqui é possível perceber também a estética da feiura.
Devidamente contextualizada, a construção do reverso da beleza foi feita através de uma trama de pensamentos, teorias e ações hegemônicas que elegeram determinados sujeitos para serem representantes da feiura diante da sociedade naquele período. Para isso, ações políticas, científicas, filosóficas e sociais atuaram para fundamentar a estética da feiura.
Nas tramas dos discursos e das ações hegemônicas, a estética do reverso da beleza foi constituída, isso significa que a beleza e a feiura são definidas a partir de referenciais modelares específicos e que tenham sentido para cada sociedade devidamente contextualizada em sua temporalidade. Para o eugenista Renato Kehl e seus pares, a relação do corpo com a personalidade (alma) também foi estabelecida onde as pessoas virtuosas deviam habitar um corpo belo e as pessoas desvirtuadas por si mesmas já habitavam um corpo feio.
Ocorreu que determinados corpos “monstruosos, abomináveis, defeituosos e tarados” como apontou Kehl e outros em diversos de seus trabalhos como corpos disgênicos, tiveram grande visibilidade e foram alvos de olhares por terem sido expostos em uma espécie de vitrine internacional considerada como circo de horror .
Até o presente momento não foram encontrados registros que trouxessem dados sobre a existência de circos de horror no Brasil, apesar de que nas apresentações circenses do período pode ter ocorrido a presença de pessoas com nanismo, gigantismo ou acromegalia, com obesidade mórbida, como também, exibições da mulher barbada, o que não significava que a mesma fosse portadora de hirsutismo ou até mesmo de hipertricose congênita, mas pode ter sido uma produção circense feita de forma artificial com maquiagens e pelos postiços.
Embora não tenha ocorrido no Brasil a exibição de etnias e pessoas nos moldes europeus e estadunidenses, houve a exposição do grupo étnico dos Botocudos no ano de 1882, como também, o caso das gêmeas xifópagas que passaram pela cirurgia de separação no ano de 1900. Em 1909, esteve no Rio de Janeiro a Madame Abomah, a gigante virgem, nome artístico de Ella Grigsby que concedeu entrevistas a jornalistas, e foi fotografada e anunciada em jornais e revistas da capital do Brasil, o que a levou a ficar conhecida também em território nacional.
Entretanto, os espetáculos que ficaram extremamente famosos foram aqueles que ocorreram na segunda metade do século XIX e início do XX em alguns países europeus e nos EUA, denominados circo de horrores, também chamados de freak shows, os quais geravam lucros aos seus proprietários através da venda de ingressos. Esse tipo de entretenimento fez com que determinadas pessoas fossem ridicularizadas ao serem chamadas de monstros. Anões, gigantes, mulheres barbadas, hermafroditas, damas tatuadas, lobisomens ou homem com cara de cachorro, belas e exóticas mulheres do Oriente, entre outros adjetivos foram impostos a cada uma delas para chamar a atenção do público. Algumas pessoas e famílias assinavam contratos espontâneos para expor a si mesmos ou algum ente familiar nos espetáculos e, assim, ganhavam algum dinheiro com isso. Outros eram expostos de maneira compulsória gerando lucro aos seus empresários.
A Inglaterra do período chamado Vitoriano (1837-1901) teve destaque como percursor dos espetáculos que posteriormente se espalharam por outros países europeus, como também, pelos EUA com os espetáculos da empresa Barnum & Bailey´s que ganhou fama mundialmente. Para que tais espetáculos ocorressem, foi necessária a montagem do espaço que foi o lugar das apresentações, a cenografia, a escolha de figurinos, a organização dos artistas para serem apresentados e a divulgação a respeito do que poderia ser extraordinário naqueles corpos e rostos. Todos os aparatos para as apresentações foram minuciosamente elaborados.
Entre os assuntos que envolveram os corpos no século XIX e início do XX está a cientificidade na qual a própria medicina aliada a outras áreas do saber investigava, catalogava e estigmatizava os indivíduos. Por muitas vezes, esses assuntos geraram interesses nas pessoas em poder ver o outro apenas por curiosidade, como descrito acima pela autora sobre o entretenimento. Outras tinham interesses educacionais, já os empresários do circo de horror tinham a intenção de causar impacto e lucrar mediante as exposições das pessoas, e sobre elas e através delas foram criadas narrativas em que corpos e culturas foram menosprezados e expostos em espetáculos sem respeito algum como, por exemplo, o corpo de uma mulher negra chamada Sara Baartman conhecida como Vênus Hotentote.
As narrativas sobre os corpos considerados indignos criaram uma espécie de mitologia que cada vez mais corroborava a ideia de que os corpos de origem europeia pertencentes às classes sociais de poder aquisitivo eram superiores porque a própria natureza geneticamente os selecionou e evidentemente as posses financeiras os permitiam praticar o autocuidado com o uso dos produtos de toalete que ofereciam, ao mesmo tempo, saúde e beleza aos seus consumidores.
Através de informações científicas, os corpos disgênicos foram selecionados e muitos formaram o elenco dos shows de horrores. Cada uma daquelas pessoas tinha sua vida exposta e houve, sobre elas, comentários que traziam deméritos sobre suas identidades que, por diversas vezes, envolviam suas etnias e isso infelizmente ajudou a construir discursos, comportamentos e ações que desrespeitam, discriminam e rotulam determinados sujeitos na sociedade da atualidade.